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Entrevista

Kátia Schweickardt: “A Amazônia tem muito a nos ensinar”

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DANIEL SANES
24/10/2022

Uma mulher negra, carioca de nascimento e manauara por opção. Uma agrônoma e cientista social, que utiliza os conhecimentos dessas distintas formações para transformar (para melhor) a realidade das comunidades indígenas e ribeirinhas da Amazônia.

Resumir a trajetória da professora Kátia Schweickardt não é tarefa fácil. Contudo, pode-se dizer que alguns princípios permeiam essa estrada: a preocupação com as questões socioambientais e o entendimento de que só é possível avançar por meio da educação. 

“Percebo a importância da educação como uma política pública, principalmente a Educação Básica, que chega às populações socialmente vulnerabilizadas. Elas precisam ser levadas em conta se quisermos, de fato, uma sociedade sustentável não só para nós, mas para as gerações futuras”, afirma a educadora, que se aproximou da região amazônica ainda no começo da carreira, ao realizar um trabalho com pequenos agricultores.

Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), onde leciona, e doutora em Sociologia e Antropologia pela UFRJ, Schweickardt é reconhecida pelo trabalho que desenvolveu nas secretarias de Meio Ambiente e Educação de Manaus. Durante sua gestão nesta última, tirou a capital amazonense das últimas posições no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), posicionando-a entre as dez primeiras colocadas. Em 2020, foi condecorada com a Medalha Inês de Vasconcelos pela Assembleia Legislativa do Amazonas pelos serviços prestados à educação pública.

Em conversa com o Portal Rhyzos, Schweickardt fala um pouco sobre a carreira, defende a proposta das classes multisseriadas (algo comum em regiões ribeirinhas) e questiona o modelo de desenvolvimento imposto pelos grandes centros urbanos.

Leia mais: Efosa Ojomo e o paradoxo da educação brasileira

Portal Rhyzos Educação – Quando assumiu o cargo de Secretária Municipal de Educação de Manaus, a cidade era uma das capitais brasileiras com pior Ideb. Hoje, figura entre as primeiras colocadas. A que atribui essa mudança?

Kátia Schweickardt – Antes disso fui secretária de Meio Ambiente de Manaus, cargo que ocupei entre 2013 e 2014. Era a menor pasta do governo, mas a gente conseguiu fazer um trabalho no sentido de melhorar a arborização urbana do município, que figura entre as cidades com mais de um milhão de habitantes com menor percentual de árvores. Então, fui convidada para assumir a pasta da Educação, a maior do município, mas também com muitos desafios. E foi assim que me encontrei “capturada” pela Educação Básica. 

Naquela época, Manaus estava em 20º lugar no Ideb, entre as 27 capitais brasileiras. Eu fiquei seis anos no cargo, e, durante os dois primeiros, todas as pautas eram voltadas para assuntos relevantes, mas que não deveriam estar dentro do eixo central. O que eu fiz naquele momento foi realizar um grande diagnóstico participativo na rede e a construção de um planejamento estratégico: o que a gente queria ser nos próximos anos e qual seria a nossa missão? Fazer Educação Básica de qualidade, garantindo o acesso, a inclusão e a permanência dos estudantes, assim como valorização dos professores. 

A gente ainda estava imerso em um processo educacional organizado a partir do século 19, uma escola que preparava os estudantes para o mundo do trabalho, mas conforme a estruturação de uma fábrica. Então, a escola era do século 19, os professores, formados no século 20, e os alunos, do século 21. Esse descompasso de 200 anos levou à nossa reflexão em torno de como melhorar o ensino na terceira maior rede de Educação Básica do Brasil – na época, Manaus só era menor que Rio e São Paulo em termos de matrículas e número de escolas.

A partir de uma educação mais significativa, poderíamos não só obter melhores resultados nas avaliações, mas sobretudo tornar essa educação emancipatória, comprometida com as questões atuais. E sobretudo, que ajudasse estudantes, professores e as comunidades no entorno das escolas a se conectarem com o principal bioma no mundo. 

Então acho que nossa primeira contribuição foi ter reorganizado a rede e fazer um trabalho com base em evidências, metas e resultados. Em 2016, começamos a fomentar a educação integral, a partir da Escola Municipal Professor Waldir Garcia, reconhecida como a escola transformadora no norte do Brasil. Com esse trabalho em torno de um processo de avaliação para a aprendizagem, e não de avaliação da aprendizagem, foi que começamos a tornar essa educação em Manaus muito mais potente.

As turmas multisseriadas são uma realidade comum nas escolas amazônicas. No entanto, há muitas críticas a esse modelo. Quais as vantagens e desvantagens dele?

Falar em sustentabilidade, que é um tema muito caro para a Amazônia – e deve ser para o mundo inteiro – não é possível sem pensarmos nas questões sociais atreladas. Falar em sustentabilidade significa garantir educação de qualidade para todos. Muitas vezes, não é possível a gente ter um professor para cada nível. Às vezes, você tem apenas dois, três alunos por nível em uma determinada comunidade. E é possível desenvolver um trabalho de boa qualidade nessas realidades multisseriadas. 

Há um entendimento no Brasil de que não, de que isso significa ausência de qualidade – muito por conta desse jeito de pensar a estrutura da sociedade, sob uma perspectiva desenvolvimentista e que adota como padrão o modo de organização social urbano. Existem, sim, problemas de infraestrutura, relacionados à formação dos professores e à vulnerabilização das comunidades dos territórios onde acontecem essas aulas. Mas existem também experiências que mostram como as classes multisseriadas podem representar uma educação significativa, que coloca diferentes saberes em diálogo. 

Alunos mais velhos podem apoiar os mais novos, e alunos de níveis diferentes podem ajudar uns aos outros, produzindo, juntos, um conhecimento de melhor qualidade. Agora, para isso ocorrer, os educadores inseridos nessa realidade precisam ter uma formação específica.

Infelizmente, na maior parte dos casos, os professores participam de formações totalmente voltadas para turmas unisseriadas, reproduzindo na sua sala multisseriada o mesmo esquema metodológico. Mas é possível fazer um trabalho de qualidade, melhorando a infraestrutura dessas escolas, tendo o material pedagógico adaptado, garantindo transporte escolar para as comunidades…

Kátia Schweickardt, professora da UFAM, sobre a Amazônia: “Tem muito a nos ensinar”. Crédito das imagens: arquivo pessoal/Jeduca.

A dificuldade de acesso é um fator que influencia muito na evasão escolar em regiões mais isoladas dos grandes centros?

Em áreas rurais, ribeirinhas, indígenas e quilombolas é muito importante que os alunos tenham direito a um turno completo de aula. Para isso, o transporte fluvial precisa ter rotas planejadas, que respeitem o horário de funcionamento das escolas. Além disso, a merenda não pode atrasar, para manter a qualidade de vida dos alunos. E, reforçando, os professores precisam de formação, suporte e acompanhamento permanente, tendo a possibilidade de dialogar com seus pares que vivenciam a mesma realidade. Tudo isso precisa ser acompanhado pelos municípios e estados. 

Leia mais: [Ebook gratuito] Como se tornar um professor 5.0?

Que ensinamentos podemos tirar do trabalho nas escolas multisseriadas? 

Boa parte dos argumentos, especialmente no Brasil, vão muito na direção de negar esse modelo como algo que pode proporcionar uma educação de qualidade. Acho que a questão central das possibilidades (ou das impossibilidades) das classes multisseriadas não está na sua forma de organização, mas no modo como essa negação vem inviabilizando estratégias pedagógicas, de gestão e de formação, que possam desenvolver e apoiar professores, alunos e suas comunidades. 

Há escolas que optam por esse modelo justamente por reconhecerem que os alunos aprendem de diferentes modos e que essas experiências podem ser trabalhadas na riqueza da diversidade. E, nessa realidade do pós-pandemia, acredito que as salas unisseriadas têm algo a aprender com esse encontro de saberes. Além disso, a estrutura das turmas multisseriadas também é uma forma de questionar a própria estrutura da sociedade, que impõe muitas dificuldades para promover equidade e respeito à diversidade no Brasil.

A pandemia teve um impacto muito grande na educação. Como isso se refletiu nesse modelo de ensino?

A pandemia escancarou uma realidade: mesmo nas salas unisseriadas, os alunos têm timing, capacidades cognitivas, interesses e anseios diferentes. Se você parar para pensar, nesse aspecto, as salas organizadamente unisseriadas são, na verdade, multisseriadas. O retorno às aulas presenciais trouxe para os professores o desafio de lidar com estudantes em diferentes níveis de aprendizagem. E assim todos tiveram a possibilidade de vislumbrar como é que tem sobrevivido o Brasil profundo, principalmente aqui, na Amazônia. 

Em muitas escolas, às vezes você só tem um professor, que desempenha a função de gestor, de secretário, às vezes até de merendeiro. Um faz-tudo. E, mesmo nessa realidade, professores e professoras vêm produzindo ou adaptando material didático e desenvolvendo metodologias que às vezes até se tornam invisíveis, pois poucas dessas experiências têm sido elencadas. 

Muitas vezes há uma sensação de que o brasileiro vê a Amazônia como algo distante. Acha que as escolas, em geral, abordam o tema de forma adequada? 

Eu acho que a Amazônia tem muito a nos ensinar. E não só porque ela é um bioma importante para a garantia do equilíbrio climático do Brasil e do mundo, mas principalmente pela diversidade dos diferentes povos e comunidades que vivem na floresta. Não gosto muito de falar em harmonia porque parece uma coisa meio romântica. O que estamos falando aqui é de uma realidade muito mais integrada à floresta: ser amazônida é ser natureza, não há uma supremacia entre ser humano e floresta. Eu acredito muito que entender a Amazônia pode nos inspirar a repensar os modelos de vida insustentáveis dos grandes centros. 

Leia mais: Por que aumentar os níveis de inclusão nas escolas brasileiras


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