7 perguntas para a professora Débora Garofalo
DANIEL SANES 29/07/2022
Implementado em 2015 na Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Almirante Ary Parreiras, no bairro Jardim Leonor, na periferia de São Paulo, o projeto Robótica com Sucata propôs inserir os estudantes em uma prática pedagógica inovadora, por meio da transformação de lixo reciclado em robôs, carrinhos motorizados e outros equipamentos funcionais. De lá pra cá, cerca de 2 mil alunos da EMEF Almirante Ary Parreiras foram impactos pela ação. Atualmente, o projeto é uma política pública de Estado, estimulando a aprendizagem de nada menos do que 3,5 milhões de jovens.
Esse trabalho rendeu inúmeros prêmios à sua idealizadora, Débora Garofalo, inclusive internacionais: em 2019, a educadora se tornou a primeira mulher sul-americana a chegar ao top 10 do Global Teacher Prize, considerado o Nobel da Educação.
Com uma experiência de 17 anos lecionando na rede pública, ela é coordenadora do Centro de Inovação da Educação Básica, da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, que busca incentivar boas práticas de inovação entre estudantes e professores. Além disso, atua como consultora para organizações do terceiro setor e escreveu livros sobre educação, inclusive uma obra introdutória ao tema da Robótica com Sucata. Em conversa com o Portal Rhyzos, Débora conta um pouco sobre a história do projeto e reflete sobre os desafios de inovar no sistema de ensino brasileiro.
A entrevista foi editada para efeitos de clareza e concisão.
Rhyzos Educação – O projeto Robótica com Sucata começou em 2015. Em que pé está a iniciativa hoje?
Débora Garofalo – O trabalho nasceu da problemática do lixo na comunidade da EMEF Almirante Ary Parreiras. Era uma dificuldade na vida deles, impedia essas crianças de irem para a escola em dias de chuva e trazia doenças como dengue e leptospirose. Sabendo dessa situação, eu, como professora, me vi diante de dois caminhos: “abraçar” o lixo como solução de um problema para ensinar programação e robótica ou lamentar. Preferi a primeira opção. O trabalho nasce da necessidade de fazer algo significativo, que pudesse trazer resultados para a comunidade escolar ao mesmo tempo em que mobilizasse as áreas do conhecimento em prol de um problema real. Hoje esse trabalho é uma política pública aqui do Estado de São Paulo e está presente em mais de 5.400 escolas desde o ano de 2019. Ainda sonho em vê-lo espalhado por todo o país, porque se mostrou uma metodologia de ensino eficaz, trazendo o viés da inovação e abrindo essa porta através da cultura maker, a cultura do faça você mesmo.
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Qual é a receptividade dos estudantes quando inseridos em uma proposta educacional mais prática?
A partir dos resultados, percebi que o Robótica com Sucata era um modo de ressignificar nossa educação. Porque começou a atrair aqueles alunos que menos tinham interesse nas aulas, com alto índice de indisciplina. Com o tempo, eles foram tendo maior interesse pelas áreas de conhecimento, ao poder exercitar esse trabalho de forma prática. Inicialmente, alguns colegas acharam que poderia ser muito trabalhoso fazer esse tipo de atividade, mas, ao ver o interesse dos estudantes, mudaram sua concepção. Por fim, conseguimos o envolvimento da comunidade escolar, que precisou ter resultados palpáveis para abraçar nosso trabalho. Hoje eu vejo o quanto isso é importante para a vida acadêmica dos estudantes. Não é preciso “abandonar” o currículo, que é o grande receio dos professores. E não precisamos necessariamente de grandes recursos para trabalhar com inovação. Mas é necessário olhar o que temos do nosso lado. O simples funciona muito bem.
O que falta para o Brasil avançar mais em tecnologia e inovação no ensino?
Existem programas fomentados em nível federal, como o Educação Conectada, que permite, inclusive, medir o nível de adoção da tecnologia nas escolas. Mas temos um longo caminho para avançar. O uso pedagógico da tecnologia é pautado em quatro dimensões: visão, formação, recursos digitais e infraestrutura. Nas nossas escolas, formação e infraestrutura são os grandes gargalos. Mas falta mais do que isso, falta realmente vontade do governo, principalmente na esfera federal. Tivemos retrocessos nessa última gestão, sem poder avançar em uma educação que seja significativa. E eu acho que a pandemia deixou isso mais latente. E se a gente olhar pelo outro lado, dos estudantes, vai perceber que eles estão totalmente conectados nessa era digital, pois nasceram nela. Então, estar conectado e compreender os pilares das tecnologias digitais da informação e da comunicação é essencial. A tecnologia não é um fim em si só, e sim um meio para se atingir objetivos. E, acompanhada de metodologias ativas, ajuda a tirar o estudante da passividade e o traz para dentro do processo de aprendizagem.
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A discussão sobre a necessidade de rever a metodologia tradicional de ensino se intensificou após a pandemia, com a implementação do ensino remoto. Qual é a principal dificuldade das escolas brasileiras nesse sentido, especialmente as públicas?
Nas nossas escolas – e a gente pôde perceber isso de uma forma muito triste, na pandemia – existe uma grande desigualdade social. Ficou provado que é necessário investir em infraestrutura, em conectividade. Tivemos discussões importantes, inclusive com veto presidencial em relação a isso. A gente vê que precisa avançar muito quando o assunto é a conectividade, de proporcionar um ensino híbrido. Por outro lado, temos outra grande barreira, que é a formação docente. Nós, professores, não fomos preparados para trabalhar com as modalidades do ensino híbrido. Quando a gente olha para o nível de adoção em tecnologia, esse é um gargalo que precisa ser vencido.
Que dica você daria para os profissionais da educação que, muitas vezes, se veem desestimulados a colocar suas ideias em prática?
Temos no Brasil aproximadamente entre 2 milhões e 3 milhões de profissionais da educação. E sabemos que a falta de valorização docente – que não é só uma questão salarial, embora também seja – é muito prejudicial para que as pessoas optem por essa carreira. Quando a gente olha pros jovens, principalmente esses que estão nos itinerários formativos, são muito poucos os que querem ser professores, justamente por causa desse desprestígio da carreira docente. Quando eu converso com outros professores eu tento enxergar o lado positivo, da oportunidade que a gente tem de realmente transformar vidas. Temos esse grande potencial transformador, e é isso o que tento mostrar para aqueles que se sentem desanimados.
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Você faz palestras e presta consultoria. Ao compartilhar suas experiências, sente que, de alguma forma, ajuda a despertar o interesse no debate público sobre os rumos da educação no Brasil?
Tenho participado de muitos debates, sempre levando minha experiência no chão da escola pública, mas também como gestora. Percebo que existe interesse de grandes gestores em implementar componentes de tecnologia e inovação. O que nós precisamos fazer é levar isso para uma esfera muito maior. Muitas vezes sinto que sou mais valorizada lá fora do que dentro do meu próprio país. Isso precisa mudar, é necessário dar luz às boas iniciativas que nascem dentro da sala de aula. A minha tomou uma proporção muito grande por conta de um prêmio, mas é muito triste a gente ainda ter que olhar para esse viés de prêmio para ter uma prática valorizada e reconhecida, uma prática que pode contribuir para a melhoria de vida de muitos estudantes. Então faço essa crítica, uma crítica positiva: temos que continuar dando luz e voz aos nossos educadores, e cada vez mais inseri-los dentro dos debates. Eu sou apenas uma, que carrego comigo as vozes de outros professores, porque dialogo com eles, mas é necessário ouvir mais pessoas. Temos muito a aprender com os professores que estão no chão da escola pública.
A educação sempre foi considerada uma das principais ferramentas para combater a desigualdade social, que tem crescido muito no país nos últimos anos. O que está faltando para que ela retome esse protagonismo?
Muito se fala em educação, principalmente em ano eleitoral, mas pouco é feito na prática. A gente não olha realmente como prioridade. Vivenciamos, nos últimos anos, vários cortes na área, e denúncias de corrupção no Ministério da Educação. É preciso investir no futuro dos jovens, estruturar melhores políticas públicas. A gente até começou a fazer isso com a BNCC (Base Nacional Comum Curricular). Temos, pela primeira vez, um documento construído a muitas mãos que dá um norte para aquela criança que está dentro da escola pública ou privada, para que todos possam tecer as habilidades e competências necessárias no desenvolvimento da sua escolarização. É um ponto importante para se trabalhar. Mas é preciso fazer isso com outros programas, que priorizem não somente qualidade, mas também equidade na educação.
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