Novo ensino médio: um balanço sobre a reforma
PAULO CÉSAR TEIXEIRA
06/07/2023
Encerrou-se nesta quinta-feira (6) a consulta pública para Avaliação e Reestruturação da Política Nacional de Ensino Médio. Por meio do WhatsApp, estudantes, professores e gestores puderam compartilhar seus conhecimentos e expectativas sobre o novo ensino médio, programa que está suspenso desde abril.
A reforma do ensino médio foi sancionada em 2017. Quatro anos depois, definiu-se um cronograma de implementação escalonado por séries – primeiro ano do ensino médio em 2022, o segundo neste ano e o terceiro em 2024. Críticas de alunos, professores, gestores e especialistas em educação, porém, fizeram o Ministério da Educação interromper a continuidade do projeto.
A principal novidade seria na grade curricular. Anteriormente, o ensino médio era composto por três anos de estudo, divididos entre 2.400 horas de disciplinas tradicionais obrigatórias, como matemática e português. Com o novo ensino médio, são 3.000 horas: 1.800 para as disciplinas tradicionais e 1.200 para os chamados itinerários formativos, com matérias de escolha dos estudantes.
“A propaganda da reforma dizia que o estudante poderia escolher a área para aprofundar seus conhecimentos. Na prática, isso não acontece”, lamenta a pesquisadora Ângela Chagas, do Núcleo de Estudos de Política e Gestão da Educação da Faculdade de Educação da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Em entrevista ao portal Rhyzos Educação, ela comenta os desdobramentos da reforma.
Rhyzos Educação – Qual é o impacto de médio e longo prazo do novo ensino médio no Brasil?
Ângela Chagas – Costumo dizer que essa é uma tragédia anunciada. Sei que é uma palavra forte, mas é o que temos observado. Desde 2016, os pesquisadores vinham alertando para uma série de efeitos que, agora, infelizmente estão se confirmando. Um dos principais é o esvaziamento da formação, principalmente na rede pública estadual, onde estão 85% dos estudantes do ensino médio do País. Antes, os alunos tinham 2.400 horas de formação geral. Agora existe um teto de 1.800 horas ao longo de três anos do Ensino Médio.
Quais são as disciplinas mais afetadas?
Houve redução significativa de carga horária em praticamente todos os componentes curriculares, inclusive em Português e Matemática, disciplinas consideradas centrais na reforma. A situação pode variar entre os estados. No Rio Grande do Sul, por exemplo, antes da reforma, os estudantes tinham 15 períodos por semana de Português; agora, só 9. Em Matemática, eram 18 horas semanais, hoje são 10. Essa redução também se deu em Química, Física, Biologia, Geografia, História etc.
Por outro lado, os itinerários da parte diversificada estão sendo ofertados de forma fragmentada, sem articulação com o restante do conteúdo pedagógico e desconectados do mundo do trabalho. Os estudantes sentem que essa carga horária diversificada não faz sentido na trajetória deles e começam a perceber que não terão boas condições de fazer o Enem ou disputar os cursos mais concorridos do vestibular.
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Uma das justificativas para a reforma é a de que ela amplia a liberdade de escolha do aluno. Isso se confirma na prática?
A propaganda da reforma dizia que o estudante poderia escolher a área para aprofundar seus conhecimentos. Na prática, isso não acontece. A pesquisa mostrou que há uma oferta limitada das trilhas de aprendizagem. Em 156 municípios gaúchos, existe somente uma escola, com apenas uma trilha disponível. O aluno não tem liberdade de escolha, a menos que mude de cidade. Um quadro semelhante foi apontado em São Paulo por pesquisadores da Rede Escola Pública e Universidade (REPU) – a implantação começou antes, por isso, as pesquisas estão mais adiantadas.
Temos que atentar ainda para o fato de que a oferta de trilhas varia de acordo com a localização da escola e o nível socioeconômico dos estudantes. Nas periferias urbanas ou em pequenos municípios, a oferta é menor. Há também a questão do trabalhador que estuda à noite. Em 40% das escolas gaúchas, a oferta é de apenas uma trilha no horário noturno. Isso tudo evidencia que a reforma aprofundou as desigualdades educacionais.
Quais os principais efeitos da reforma na vida do professor?
Uma das dificuldades é a falta de formação para atuar nos novos componentes curriculares. Por exemplo: o professor trabalha numa trilha sobre sustentabilidade e qualidade de vida, na qual precisa ensinar legislação ambiental, mas a formação dele é em Física. Para falar de sustentabilidade, recebeu apenas uma ementa, que é um resumo dos temas que precisa trabalhar na disciplina, algo muito genérico. Além disso, aumentou a carga horária de forma significativa. Antes, ele dava aula de Física, agora precisa dar conta também das trilhas sobre projeto de vida, mundo do trabalho, legislação ambiental etc. Em cada uma delas, tem que preparar conteúdo, corrigir trabalhos, estar ali no dia a dia da sala de aula.
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E para os gestores, o que mudou com o novo ensino médio?
No caso da rede pública, a reforma não foi acompanhada de investimentos robustos para melhorar a estrutura das escolas, com número adequado de professores com formação de qualidade para trabalhar os novos componentes do currículo. Eu digo que diretores e coordenadores pedagógicos estão trabalhando no gerenciamento do caos. O cotidiano da escola tem sido cada vez mais caótico e os gestores precisam matar um leão por dia.
E quanto à realidade do novo ensino médio na escola privada?
A principal diferença é que a escola particular consegue ofertar uma formação de base sólida para que o estudante possa fazer o Enem e prestar vestibular. Ainda assim, pelo que tenho acompanhado de relatos de pesquisadores e professores, também existem problemas na rede privada, principalmente nas escolas com menor quantidade de alunos, que têm dificuldades para assegurar a oferta de diversidade de conteúdo que a reforma propõe. Já as escolas de maior porte, que cobram mensalidades mais elevadas, disponibilizam as atividades diversificadas no contraturno e focam na formação básica para facilitar o ingresso do estudante no ensino superior. O forte delas sempre foi preparar para o vestibular e continuam fazendo isso.
Qual é a saída, na sua opinião: revogar ou aprimorar o novo ensino médio?
É urgente discutir mudanças, o que não exclui a possibilidade de revogação da reforma. Temos o entendimento de que esses problemas são estruturais. Portanto, não adianta fazer um remendo aqui, outro ali. Essa visão é, inclusive, compartilhada pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd). O que percebemos é que ela agravou os problemas que já existiam no antigo Ensino Médio e aprofundou as desigualdades sociais.
Já tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que propõe alterações significativas. Por sua vez, o MEC promoveu a consulta pública sobre o tema. A gente espera é que a voz de estudantes e professores, e também as evidências das pesquisas sobre a reforma, sejam levadas em conta na decisão que vier a ser tomada.
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